Confira abaixo análise jurídica feita por Mariana Salvatti Mescolotto. Adaptada, revisada e editada por Fernanda Pessoa.
A Ilha do Campeche, localizada no litoral de Santa Catarina, destaca-se como um dos mais importantes patrimônios arqueológicos do Brasil. Com uma expressiva concentração de registros rupestres e históricos, a ilha é considerada um sítio arqueológico de relevância nacional. Seu tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2000 reconheceu não apenas a riqueza cultural e histórica do local, mas também a necessidade de sua proteção contra impactos ambientais e ocupações irregulares.
Apesar das medidas de preservação implementadas ao longo dos anos, a Ilha do Campeche enfrenta desafios relacionados à gestão da visitação e às ocupações por associações privadas. O desrespeito aos limites de visitação e a existência de construções irregulares têm gerado conflitos envolvendo órgãos ambientais e o Ministério Público Federal (MPF), culminando na necessidade de medidas judiciais para garantir a proteção da ilha. Veja a seguir apresenta-se uma linha do tempo com os principais eventos relacionados à história, proteção e os desafios enfrentados na Ilha do Campeche.

Linha do Tempo:
- 1950: Registros indicam que associados do Clube de Caça, Pesca e Tiro Couto de Magalhães (atual ACOMPECHE) introduzem quatis na ilha.
- 1987: A Superintendência do Patrimônio da União em Santa Catarina concede à ACOMPECHE a inscrição de ocupação de grande parte da ilha.
- 1998: Início do processo de tombamento da Ilha do Campeche pelo IPHAN (processo n. 1.426-T-98, iniciado em 27 de julho).
- 2000: Tombamento da ilha como patrimônio arqueológico, etnográfico e paisagístico pelo IPHAN (Portaria n. 270, de 18 de julho). A partir de então a Ilha do Campeche fica com uma proteção específica e abrangente, conforme Decreto Lei nº 25/1937.
- 2004: Extinção dos acampamentos da ACOMPECHE na ilha por meio dos Termos de Ajustamento de Conduta (TACs).
- 2009: IPHAN publica a Portaria n. 691 sobre as diretrizes e critérios para proteção, conservação e uso da Ilha do Campeche. É instituído o limite diário de 800 pessoas para visitação/ocupação da ilha, especialmente durante a temporada de verão, a extrapolação desse máximo caracterizando risco para o meio ambiente e para o patrimônio cultural.
- 2016: Identificação de novas construções irregulares na ilha na área de restinga ocupada pela ACOMPECHE, incluindo a Casa de Andrino e a Casa de Saulo.
- 2019: Vistoria com objetivo de aferir o cumprimento do Termo de Suspensão das atividades da ACOMPECHE aplicada pelo IBAMA. É constatado que a ACOMPECHE descumpriu, resultando em novo auto de infração.
- 2020/2021: Último Termo de Ajustamento de conduta (TAC): MPF, IPHAN, ACOMPECHE, Instituto Ilha do Campeche (IIC), Associações de Transporte Náutico (ATBL, APAAPS, ABTC) e Restaurante Bacalhau (Nabor João dos Santos) estabelecem regras para visitação, transporte e conservação da Ilha, com multa de R$ 10.000,00 por descumprimento.
- 2021: Nova vistoria realizada pela FLORAM aponta irregularidades nas edificações e dificuldades na fiscalização da visitação. Há 16 edificações, a maioria de propriedade da ACOMPECHE. Há dificuldade em impedir a entrada de visitantes não autorizados e falta de contabilização de visitantes não cadastrados no TAC.
- 2022: Ação Civil Pública nº 5035222-54.2022.4.04.7200 movida pelo MPF para defesa do meio ambiente e do patrimônio arqueológico da Ilha do Campeche. O MPF expediu recomendação ao IPHAN diante do agravamento do quadro de superação dos limites de visitação e da inviabilidade de fiscalização adequada.
- 2023:
- Acordo Parcial (Outubro): Partes do processo da Ação Civil Pública estabelecem regras para o transporte de passageiros, visando a proteção da Ilha.
- Decisão Liminar (Dezembro): O Município de Florianópolis é obrigado a impedir o transporte de passageiros por terceiros não signatários do TAC, sob pena de multa.
- 2024:
- Decisão Monocrática (Janeiro): Liminar é suspensa sob condição de que o Município implemente sistema de controle de acesso à Ilha, com cronograma definido.
- Acordo Parcial (Agosto): Novo acordo define que apenas transportadores do TAC podem desembarcar passageiros até a criação da Unidade de Conservação e implementação do sistema de controle. Após essa etapa, 85% das cotas ficam reservadas aos signatários do TAC e 15% para outros transportadores, mediante processo seletivo.
- Decisão Judicial (Novembro): Detalha as responsabilidades do Município, incluindo sistema de vouchers, agenda de fiscalização, cobrança de taxas e repasse de contribuições.
- 2025:
- Petição do MPF (Janeiro): MPF, com apoio do Instituto Ilha do Campeche, aponta falhas na fiscalização do Município, como a extrapolação da capacidade de suporte, desembarques não autorizados e atividades comerciais irregulares.
- Agravos de Instrumento: Disputas jurídicas sobre a divisão de cotas de acesso à Ilha e sobre o interesse econômico de partes envolvidas.
- Ação Civil Pública nº 5000027-06.2024.4.04.0000: Ação relacionada à divisão de cotas e acordos parciais.
Regulamentações da Prefeitura de Florianópolis
- Portaria 059/SMSOP/GAB/2024: Regula o transporte de visitantes, estabelecendo cotas para diferentes associações e modalidades de transporte, além de criar a autorização individual de visitação.
- Instrução Normativa 001/SMSOP/2025: Detalha as operações de fiscalização na Ilha, com ações conjuntas entre órgãos e foco no controle de visitantes, transporte e atividades comerciais.
- Instrução Normativa 002/SMSOP/2025: Especifica as ações de inspeção e fiscalização da Portaria 059/SMSOP/GAB/2024, com frequência mínima de três vezes por semana.
Principais agentes e suas atribuições
- IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional): Responsável pela proteção do patrimônio cultural e tombamento da Ilha do Campeche. Autoriza ou veta obras e atividades na Ilha, e estabelece diretrizes para proteção, conservação e uso.
- ACOMPECHE (Associação Couto de Magalhães de Preservação da Ilha do Campeche): Possui inscrição de ocupação da maior parte das terras interiores da Ilha. Acusada de atividades e usos sem licenciamento ambiental e pelo excessivo número de visitantes diários.
- MPF (Ministério Público Federal): Moveu a Ação Civil Pública em defesa do meio ambiente e do patrimônio arqueológico da Ilha.
- Município de Florianópolis: Responsável por impedir o transporte de passageiros por terceiros não signatários do TAC e por implementar um sistema de controle de acesso à Ilha.
- IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis): Responsável por lavrar autos de infração e termos de suspensão devido a atividades irregulares na Ilha.
- FLORAM (Fundação Municipal do Meio Ambiente de Florianópolis): Responsável por realizar vistorias na Ilha e identificar problemas de controle de visitação e construções irregulares.
- Instituto Ilha do Campeche: Criado para apoiar as ações de proteção à Ilha, em cooperação com o IPHAN.
- Associações de Transporte Náutico: ATBL, APAAPS e ABTC, que participam dos TACs e são responsáveis pelo transporte de visitantes para a Ilha.
Considerações
A Ilha do Campeche é um exemplo emblemático da crise ambiental em Florianópolis, revelando as consequências da desestruturação das políticas e órgãos de proteção ambiental, aprofundada com a reforma administrativa de 2024. A ausência de uma gestão integrada e eficiente tem permitido a exploração predatória do local, favorecendo a especulação imobiliária e o turismo descontrolado.
A falta de envolvimento das secretarias municipais é um reflexo desse cenário. A Secretaria Municipal de Turismo, Desenvolvimento Econômico e Inovação não apresenta iniciativas para um turismo sustentável na ilha. A Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Lazer demonstra desarticulação e negligência na proteção desse patrimônio arqueológico de grande relevância. A Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, já fragilizada pela reforma administrativa, carece de estrutura robusta para fiscalizar e garantir a preservação ambiental.
Além disso, a ausência de nomeação do superintendente e diretores da FLORAM compromete ainda mais a atuação do órgão. A transferência da fiscalização ambiental para a Secretaria de Segurança Pública e sua execução pela Guarda Municipal, em detrimento de técnicos especializados, demonstra um retrocesso na política ambiental da cidade. A terceirização dessa fiscalização contraria normativas federais, como o artigo 17 da Lei Complementar 140/2021 e o artigo 70 da Lei dos Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), que estabelecem que a fiscalização ambiental deve ser realizada pelos órgãos responsáveis pelo licenciamento ambiental.
Os encaminhamentos da Prefeitura ignoram o papel essencial da FLORAM, cujas competências são expressas na Lei Municipal n. 4.645/1995, especialmente na execução da política ambiental do município e na administração das unidades de conservação. Entre suas funções, destacam-se a fiscalização de áreas protegidas, o controle da poluição, a proteção da fauna e flora, a regulamentação do turismo ecológico e a aplicação de penalidades para infrações ambientais. No entanto, essas atribuições têm sido sistematicamente esvaziadas.
Diante desse contexto, fica evidente que o capital ecológico de Florianópolis é explorado para atrair investimentos internacionais e fomentar um turismo predatório, voltado exclusivamente para alimentar a especulação imobiliária e a expropriação dos recursos naturais. A Ilha do Campeche, com toda sua riqueza arqueológica e ambiental, é um símbolo dessa política de destruição, exigindo ações imediatas para sua real proteção e valorização.